A Cidade dos Mortos - Primeira Parte
"A cidade dos mortos antecede a cidade dos vivos. Num sentido, aliás, a cidade dos mortos é a precursora, quase o núcleo, de todas as cidades vivas. A vida urbana cobre o espaço histórico entre o mais remoto campo sepulcral da aurora do homem e o cemitério final, a Necrópolis em que uma após outra civilização tem encontrado o seu fim."
A expressão cemitério tem sua origem na cultura grega, sendo derivada de Koimetérion, que significa “eu durmo”, e do latim Coemeterium, referindo-se a um espaço destinado a funerais, também conhecido como Necrópole. Ao longo da história ocidental, diversas formas de cemitérios foram estabelecidas.
Para que se possa entender a história dos cemitérios, é necessário reflectirmos sobre a evolução da concepção da morte que nortearam as práticas de enterramento desde os primórdios da humanidade. É a partir de uma determinada crença sobre a morte que podemos encontrar uma justificação sobre o destino que os vivos darão aos mortos. Só tendo como guia o imaginário da morte compreenderemos as várias formas de enterramento na história humana.
O desconhecimento sobre o fenómeno, morte, a falta de uma explicação para o desaparecimento repentino da força motora do corpo, para a sua putrefacção, levou a que muitos povos aceitassem que se tratava de um novo estágio do corpo, alimentando a crença de que, nesse novo estágio, os seus entes queridos continuavam a ter as mesmas necessidades que tiveram em vida. Esta é uma das razões porque os mortos eram enterrados com os seus objectos preferidos para além de ser colocado, junto das suas sepulturas, alimentos.
Podemos, pois, constatar que desde sempre a humanidade demonstrou um certo respeito pelos seus mortos, encontrando um lugar especial para os sepultar, na medida das suas crenças.
Por vezes enterravam, juntamente com os mortos, alimentos e utensílios, o que indica acreditarem numa vida do além. As sepulturas eram cobertas com pedras, para evitar profanação por parte de animais.
A morte é interpretada de maneiras distintas em diferentes culturas, como entre os hindus, os antigos gregos e os povos mesopotâmicos. Para os hindus, a morte é uma passagem para o Absoluto, enquanto que para os mesopotâmicos, é vista como uma condição degradada de existência.
Ao contrário dos mesopotâmicos, os hindus praticam a cremação, mas não espalham cinzas; em vez disso, elas são preservadas como um meio de honrar o falecido e facilitar sua passagem para uma existência superior. O hinduísmo é uma das religiões que mais utiliza a cremação. Cinco categorias de indivíduos não podem ser cremados segundo o ritual hindu: crianças menores de 10 anos, grávidas, leprosos, falecidos por envenenamento de serpente e santos. Essas restrições referem-se à crença hindu de que a cremação significa a purificação da alma pelo fogo para o renascimento. Como crianças, santos e fetos não cometeram pecados, não precisam de purificação, sendo seus corpos depositados nas águas de um rio. Leprosos e mortos por serpentes possuem outras justificativas; no primeiro caso, a doença é uma punição dos deuses e, no segundo, acredita-se que a água pode ajudar o cadáver a vomitar e retornar à vida.
Os antigos gregos, por sua vez, celebravam a morte como um momento de honra e memória. Os gregos também praticavam a cremação, que era vista como um acto de purificação para preparar o falecido para um novo status social entre os mortos. Ao contrário dos hindus, as cinzas dos falecidos eram cuidadosamente guardadas e comemoradas, reflectindo um significado cultural diferente atribuído ao acto de cremação.
A prática da cremação sofreu inúmeros preconceitos e proibições. Para os cristãos, o corpo é o templo do Espírito Santo e, por isso, não pode ser incinerado. Combatida, a ideia de destruir um cadáver pelo fogo era utilizada como vingança e punição a hereges e em casos excepcionais de guerras ou em outros momentos em que a mortalidade era significativa, como na peste negra. No século XIX, diante de epidemias, a prática ganhou força, principalmente com a epidemia de cólera na Inglaterra de 1840. Além da questão higienista, era uma atitude anticatólica, uma maneira de reforçar as diferenças entre os protestantes e os adeptos da Igreja Romana.
As perspectivas judaica e cristã sobre a morte compartilham semelhanças significativas, especialmente no que diz respeito à crença na vida após a morte e à importância dos rituais fúnebres. Ambas as tradições oferecem uma visão de esperança e continuidade, enfatizando a necessidade de viver uma vida moral e significativa para garantir um destino favorável após a morte. Os primeiros cristãos adotaram uma visão diferente da morte. Enquanto outras culturas acreditavam em uma vida após a morte dependente da memória, os cristãos viam a morte como uma transição para a vida eterna, o que moldou significativamente as práticas de sepultamento. Na civilização cristã, a morte foi percebida como uma passagem para outra dimensão da vida, seja de recompensa ou de prosperidade. A sepultura dos corpos foi realizada com solenidade, em respeito à expectativa da ressurreição. Essa visão cristã influenciou hábitos funerários que enfatizavam a dignidade e a importância do rito de passagem.
A percepção da morte molda significativamente as práticas religiosas em todas as culturas, influenciando tudo, desde rituais funerários até discursos filosóficos e identidades comunitárias. Esses rituais ilustram as diversas maneiras pelas quais as culturas interpretam a morte e a vida após a morte, cada uma reflectindo crenças, valores e estruturas sociais únicos.
Várias foram as manifestações arquitectónicas, utilizadas ao longo dos tempos, que deram rosto à cidade dos mortos, como cavernas, sarcófagos, sepulcros e estátuas tumulares, entre outros. Desde a pré-história aos nossos tempos podemos identificar diferentes tipologias de espaços funerários que nos possibilitam um maior conhecimento sobre o mundo dos vivos, a sua cultura, a sociedade em que se inseriam. A importância da morte e dos lugares reservados à manifestação dos sentimentos que a mesma provoca, sempre existiu. Desde o paleolítico que os mortos foram os primeiros a ter uma morada permanente, à qual, possivelmente os vivos retornavam entre as suas viagens para lhes prestar a sua homenagem.
Lewis Mumford na sua obra a "Cidade na História" teoriza sobre o nascimento da cidade celebrizando a existência das primeiras cidades "a cidade dos mortos antecede a cidade dos vivos", uma vez que - “Em meio às andanças inquietas do homem paleolítico, os mortos foram os primeiros a ter uma morada permanente: uma caverna, uma cova assinalada por um monte de pedras, um túmulo colectivo” - o que nos leva a concluir que a humanidade sempre se preocupou com a morte, interpretando-a, chorando-a ou festejando-a segundo as suas crenças.
Sabemos que no Neolítico os defuntos para além de serem colocados em cavernas cuja entrada era fechada por uma rocha, eram também inumados em sepulturas artificiais, os dolmens, um círculo de pedras erguidas cobertas por uma outra. Estas construções revelam a importância que, ao longo da História, a morte, os mortos e os lugares reservados a eles, adquiriram em cada cultura e em cada época. Por volta de 3500 a.C., aparecem as primeiras sepulturas colectivas, provavelmente familiares, e a hierarquização da sociedade perpetua-se nos túmulos: os dos chefes distinguem-se dos outros graças a objectos sumptuosos.
Na antiga civilização egípcia, os locais de sepultamento eram localizados fora dos centros urbanos, como as pirâmides monumentais de Gizé situadas ao longo do Rio Nilo e o cemitério da vila de Deir el Medineh, que possui túmulos piramidais organizados em áreas definidas. Os etruscos desenvolveram necrópoles com túmulos majestosos, alinhados e cobertos por vegetação, ao longo de uma via secundária, criando verdadeiras cidades para os mortos, como na Necrópole da Benditaccia em Cerveteri. Durante o Império Romano, foram erigidos mausoléus, sepulcros e catacumbas para acomodar os falecidos, localizados fora das cidades, como na antiga Via Ápia, a principal rota da época (312 a.C.). Nos primórdios do cristianismo, os crentes eram enterrados em catacumbas subterrâneas, que possuíam passagens irregulares com pequenos cômodos e nichos retangulares escavados nas paredes para abrigar os corpos, conhecidos como lóculos, como exemplificado na Catacumba de Priscilla (séculos II a V d.C., Roma). Durante a Idade Média, surgiram os locais sagrados, incluindo as Necrópoles Reais dentro das igrejas, adornadas com monumentos imponentes, construídos em homenagem à nobreza, como a Basílica de São Denis, onde repousaram os reis e rainhas da França entre os séculos VI e XVI. Posteriormente, foram estabelecidos Campos-santos, dedicados ao sepultamento de falecidos em terrenos religiosos ao ar livre. A partir do Séc. XVIII, os enterros eram profundamente religiosos, reflectindo o domínio da Igreja sobre as práticas funerárias. Com o tempo, houve uma individualização das sepulturas, anteriormente um privilégio da nobreza e do clero, e os rituais começaram a concentrar-se no âmbito familiar .
Os primeiros cemitérios cristãos, chamados de "Koimeteria", que significa dormitórios, reflectiam uma crença na morte como um estado temporário antes da ressurreição.
Para continuar a ler sobre este tema click na Página Cemitério de Paranhos no friso do Blogue.